sábado, 15 de agosto de 2009

O porvir do Cardeal Cagliero — 1854

A Santíssima Virgem deu uma nova prova de seu especial amparo e de seu maternal agrado pelo que os alunos do Oratório tinham feito em favor dos emprestados do Turim, outorgando a cura ao jovem João Cagliero, mais tarde Cardeal da Santa Mãe Igreja.

"Enquanto não existia já esperança alguma nos meios humanos —escreve o [Beato] Miguel Rúa— Dom Bosco recomendou ao doente que recorresse à Virgem, anunciando-lhe ao mesmo tempo que sanaria, e eu fiquei assombrado ao comprovar a realização daquela profecia".

Vamos expor o fato com todos seus pormenores:
Um dia, por volta de fins do mês de agosto, João Cagliero, cansado pelo trabalho realizado na assistência dos doentes, ao voltar do lazarento a casa se sentiu mal e teve que deitar-se. [São] João Bosco, que o amava como um pai, fez que lhe prodigalizassem todos os cuidados possíveis para salva-lo das terríveis febres gástricas que padeceu durante dois meses quase; mas tudo foi inútil. Dada a gravidade do mal, poucos dias depois de ter começado a guardar cama, Cagliero se confessou e recebeu a Sagrada Comunhão. Mas as febres foram em aumento de tal maneira, que no término de um mês reduziram o doente aos extremos. São João Bosco tinha anunciado em público que nenhum de seus filhos morreria da epidemia que vingava na cidade, contanto que todos se mantivessem na graça de Deus. Cagliero, que então contava dezesseis anos, confiava plenamente nas palavras de São João Bosco; mas o pior em seu caso era que sua enfermidade não provinha do morbo asiático. No Oratório todos estavam convencidos de que o paciente passaria de um dia a outro à eternidade; o jovem doente, enquanto isso, estava tranqüilo.
Dois célebres médicos do Turim, Galvano e Bellingeri, depois de uma consulta, declararam que se tratava de um caso desesperado e aconselharam a São João Bosco que administrasse ao paciente os últimos sacramentos, pois provavelmente não chegaria ao dia seguinte. Então o clérigo Buzzetti advertiu ao Cagliero do perigo em que se encontrava e lhe anunciou que [São] João Bosco viria para confessá-lo, lhe dar o Viático e lhe administrar a Extrema unção.
O Santo não demorou em entrar na habitação do doente com a intenção de lhe preparar ao grande passo; quando, havendo-se detido na soleira da porta, viu ante seus olhos um maravilhoso espetáculo:
Viu aparecer uma muito formosa pomba, à qual, como um objeto luminoso, pulverizava a seus redor brilhos de luz muito viva, de forma que toda a habitação estava intensamente iluminada. Levava no bico uma raminha de oliveira e voava uma e outra vez ao redor da habitação. Quando detendo o vôo sobre o leito do doente, tocou os lábios do paciente com o raminho de oliveira e depois o deixou cair sobre sua cabeça. E despedindo uma luz mais viva ainda, desapareceu.
São João Bosco compreendeu então que Cagliero não morreria, pois ficavam que fazer muitas coisas para glória de Deus; que a paz, simbolizada por aquele ramo de oliveira, seria anunciada por sua palavra; que o resplendor da pomba significava a plenitude da graça do Espírito Santo que algum dia o investiria.
Desde aquele momento o Santo alimentou a idéia confusa, mas firme, que perdurou sempre nele, de que o jovem Cagliero séria Bispo. E sem mais, considerou como realizado aquele prognóstico quando Cagliero partiu pela primeira vez Para a América.
A esta primeira visão aconteceu outra. Ao chegar São João Bosco ao centro da habitação, desapareceram como por encanto as paredes e ao redor do leito do doente viu uma grande multidão de figuras estranhas de selvagens, que tinham o olhar fixo no paciente e que cheios de temor pareciam lhe pedir socorro. Dois homens que se sobressaíam entre outros, um de aspecto feroz e preto e outro de cor de bronze, de elevada estatura e porte guerreiro, com certo aspecto de bondade, estavam inclinados sobre o pequeno moribundo.
São João Bosco compreendeu mais tarde que aquelas fisionomias correspondiam aos selvagens da Patagonia e da Terra do Fogo.
Estas duas visões duraram breves instantes e nem o jovem doente nem os ali pressente se deram conta de nada.
São João Bosco, com sua acostumada serenidade e seu habitual sorriso, aproximou-se do leito lentamente, enquanto Cagliero lhe perguntava:
—É acaso esta minha última confissão? —por que me faz essa pergunta? — replicou-lhe São João Bosco.
Por que desejo saber se vou morrer.
São João Bosco se reconcentrou um pouco e lhe disse:
—me diga, João você gostaria de ir agora ao Paraíso, ou quer melhor curar e esperar ainda?
—Oh, meu querido [São] João Bosco—respondeu Cagliero—, escolho o que seja melhor para mim.
—Para ti seria certamente melhor o partir agora mesmo ao Paraíso, pois tendes poucos anos. Mas não é agora tempo disso; o Senhor não quer que morras agora. Há muitas coisas que fazer; sanarás e, segundo teu desejo de sempre, vestirás o hábito clerical..., chegarás a ser sacerdote, e depois... depois... — aqui São João Bosco deixou de falar e ficou um tanto pensativo— e depois... com teu breviário sob o braço terás que dar muitas voltas... e terás que fazer levar o breviário a outros muitos.... sim, terás que fazer ainda muitas coisas antes de morrer... e irás longe, muito longe.
E calou sem lhe dizer aonde iria.
—Se for assim —replicou Cagliero— não é necessário que me prepare para receber os Sacramentos. Eu tenho minha consciência tranqüila. Confessar-me-ei quando me levantar e quando todos meus companheiros se aproximem dos Sacramentos.
—Bem —lhe respondeu São João Bosco—, podes aguardar até que te levantes.
E nem o confessou nem lhe falou mais dos últimos sacramentos.
Desde aquele momento Cagliero não se preocupou o mais mínimo de sua enfermidade, pois tinha a segurança de que sua cura era coisa muito certo.
E, em efeito, não demorou em começar a melhorar, entrado em uma franca convalescença. Mas quando parecia afastado todo perigo, como seus parentes lhe tivessem mandado no mês de setembro um pouco de uva, o moço a comeu com avidez, como um alimento que ele considerava inofensivo, e voltou a recair, encontrando-se ao borde do sepulcro.
Teve-lhe que avisar à mãe que voltasse a vê-lo, comunicando-se o ao mesmo tempo a má aparência que havia tornado a tomar a enfermidade, e a boa mulher se apressou a retornar do Castelnuovo. Logo que penetrou na habitação e viu seu filho naquele estado, exclamou dirigindo-se às pessoas que lhe assistiam:
—Meu João está morto! Pelo que vejo, tudo terminou.
Mas João, manifestando a alegria que sentia pela chegada da mãe, sem mais começou a lhe dizer que pensasse em lhe preparar a batina de clérigo com todos os outros acessórios, para sua recepção clerical. A boa mulher acreditou que seu filho delirava e, em efeito, disse a [São] João Bosco que chegava naquele preciso momento:
—Oh, [São] João Dom Bosco, quão certo é que meu filho está muito mau! Está delirando e me fala de vestir o traje de sacerdote e me há dito que lhe prepare todo o necessário.
E o Santo lhe respondeu:
—Não, não, minha boa Teresa!, seu filho não delira, expressou-se muito bem; prepare-lhe, pois, todo o necessário para vesti-lo o de clérigo; tem que fazer ainda muitas coisas e não pode nem quer morrer.
Cagliero, que o ouvia tudo, disse:
—O que, mamãe! Não o ouvistes? Você me faz a batina e [São] João Dom Bosco me imporá isso.
Sim, sim —exclamou a mãe chorando—, pobre meu filho! Por-lhe-emos um traje, mas Deus queira que não seja muito distinto do que desejas.
São João Bosco procurou tranqüilizá-la, lhe assegurando que veria seu filho vestido de clérigo, mas a boa mulher seguia dizendo em voz baixa:
—Por-te-ei um traje qualquer quando lhe meterem na caixa.
O filho, em troca, sem perder a alegria, falava com todos os que vinham a visitá-lo, da batina que logo vestiria. Em efeito, porque tal era a vontade de Deus, quando recuperou um tanto as forças, a mãe o levou ao povoado. Estava tão magro que parecia um cadáver, estava tão debilitado que não se podia sustentar, em pé mas tinha que caminhar apoiado em uma bengala; dava compaixão vê-lo. Entretanto seguia insistindo à mãe que lhe preparasse suas vestes de clérigo, e a boa mulher decidiu lhe agradar. As pessoas que a viam entregue a esta tarefa perguntavam:
—O que fazeis, Teresa?
—Estou preparando a batina para meu filho.
—Mas se esta meio morto, se apenas se pode sustentar em pé.
—E, entretanto, ele o quer assim.
Em uma carta que São João Bosco lhe tinha escrito desde o Turim, com data de 7 de outubro, dizia-lhe: "Muito querido Cagliero. Agrada-me grandemente o saber que melhoras de saúde; nós te esperamos para quando puderes vir, o principal é que te encontres perfeitamente bem; que sigas tão alegre como de costume. Parece-me muito bem que vás preparando-te para a recepção... Saúda teus parentes; roguem todos por mim e que o Senhor lhes benza e lhes encha de toda sorte de prosperidades. Acredite-me teu muito afeiçoado: [São] João Dom Bosco".
Aproximava-se o dia em que Cagliero tinha que retornar ao Turim para a unção sacerdotal. Seus amigos e parentes tentavam tirar-lho da cabeça dado seu estado doentio, lhe dizendo que deixasse para outra sua data de recepção da batina. Mas ele respondeu:
—De maneira nenhuma. Tenho que tomar a batina agora, porque assim me há isso dito [São] João Dom Bosco.
Outros diziam que era muito jovem, que ainda tinha que fazer o último curso de bacharelado; mas ele lhes respondia:
—Não importa [São] João Dom Bosco me há dito isso.
Por mera coincidência, o dia que tinha que partir para o Oratório era o mesmo em que seu irmão tinha que contrair matrimônio, por isso este lhe insistia para que ficasse a assistir a aquela festa. João lhe respondeu:
Você faça o que queira, que eu, por minha parte, farei também o que mais me agrade; isto é: receber o hábito clerical.
Os parentes queriam retê-lo, lhe dizendo que se partisse, dava amostras de que a pessoa que o irmão tinha escolhido para esposa não lhe era grata.
—Meu irmão que faça o que queira; asseguro-lhes que estou contente, muito contente da eleição que tem feito. Não lhes basta isto?, —replicou João—. É que querem que o deixe consignado em ata notarial que estou contente?
Em 21 de novembro, Cagliero, perfeitamente restabelecido, voltava para o Oratório, e o 22, festividade da Santa Cecília, [São] João Dom Bosco benzia o hábito clerical e o impunha a seu amado filho. O Reitor do Seminário Metropolitano, cônego A. Vogliotti em 5 de novembro de 1855 concedia ao clérigo Cagliero que vivesse com [São] João Dom Bosco, freqüentando ao mesmo tempo as classes do Seminário e lhe dando ao fim de cada curso os correspondentes certificados de estudos para cumprir as disposições dadas por seu Excia. Rdma. o Senhor Arcebispo em uma circular publicada em 1 de setembro de 1834. Idênticos certificados se deram também a outros clérigos que viviam no Oratório.
São João Bosco, enquanto isso, tendo sempre ante si a visão da pomba e dos selvagens, parece que confiou o segredo a Dom Alasonatti.
Este, encontrando-se um dia com o Cagliero, disse-lhe:
—Tens que te fazer muito bom, porque Dom Bosco assegura coisas muito notáveis relacionadas contigo.
No ano de 1855, alguns clérigos e jovens rodeavam a São João Bosco que estava sentado à mesa e brincavam falando cada um de seu futuro. O Santo, ficando um pouco silencioso e adotando uma atitude pensativa e grave, como às vezes estava acostumado a ter, olhando a cada um de seus alunos, disse:
—Um de vós chegará a ser Bispo.
Esta profecia encheu a todos de admiração, e depois acrescentou sorrindo:
—Mas Dom João Bosco será sempre só Dom João Bosco.
Para ouvir estas palavras todos começaram a rir, pois eram simples clérigos e não podiam nem suspeitar em quem se cumpriria tal predição. Nenhum deles pertencia a uma classe elevada da sociedade, mas sim, ao contrário, pertenciam a uma classe modesta, mas bem pobre e a dignidade episcopal se escolhia, ao menos naqueles tempos, entre as pessoas da nobreza, ou ao menos entre indivíduos de estranha virtude e engenho. Por outra parte, a posição de São João Bosco e de seu Instituto era então tão modesta que, humanamente falando, parecia impossível que um de seus alunos fosse eleito para o Episcopado. Quanto mais que então não se tinha idéia das Missões exteriores ou estrangeiras. Mas a mesma improbabilidade de tal acontecimento mantinha viva a predição e inclusive não faltou quem durante algum tempo alimentou a idéia de ser ele o candidato.
Estavam pressentes quando São João Bosco disse estas palavras os clérigos Turchi, Reviglio, Cagliero, Francesia, Anfossi e o [Beato] Miguel Rúa. E estes mesmos ouviram o servo de Deus repetir:
—Quem ia dizer que um de vós seria eleito Bispo?
Também repetiu não poucas vezes:
—Oh! Observemos a ver se [São] João Dom Bosco se equivoca. Vejo em meio de vós uma mitra e não será uma mitra sozinha. Mas aqui já há uma.
E os clérigos tentavam, brincando com São João Bosco, adivinhar quem deles, então simples clérigos, chegaria a ser Bispo. O servo de Deus, por sua parte, sorria e calava. Às vezes pareceu deixar entender algo do que tinha visto na visão.
Narra Mons. Cagliero: Nos primeiros anos de meu sacerdócio me encontrei com [São] João Dom Bosco ao pé da escada um tanto cansado. Com amor filial e em tom de brincadeira:
--- [São] João Dom Bosco, me dê a mão —lhe disse—, já verá como sou capaz de lhe ajudar a subir as escadas.
E ele, paternalmente, tendeu-me sua mão, mas ao chegar ao último lance me dou conta de que tentava beijar minha mão direita. Imediatamente a retirei, mas não o fiz a tempo.
Então lhe disse:
—Com isto pretendeu humilhar-se ou me humilhar?
—Nenhuma coisa nem outra —me respondeu—; o motivo o saberás a seu tempo.
No 1883 oferecia a Dom Cagliero um indício mais claro; porque no momento de partir para a França, depois de fazer seu testamento e dar as lembranças a cada um dos membros do Capítulo Superior, ao Cagliero entregava uma caixinha selada, lhe dizendo:
—Isto é para ti.
E partiu.
Algum tempo depois Dom Cagliero se deixou levar da curiosidade e quis ver o conteúdo daquela caixinha e eis que encontrou nela um precioso anel.
Finalmente, em outubro de 1884, tendo sido eleito Dom Cagliero Bispo titular da Magida, este pediu a São João Bosco se dignasse lhe revelar o segredo de trinta anos atrás, quando assegurava que um de seus clérigos chegaria a ser Bispo.
—Sim— lhe respondeu, dir-lhe-ei isso na véspera de sua consagração.
E na véspera daquele dia o Santo passeando a sós com o Mons. Cagliero por sua habitação, disse-lhe:
Recorda a grave enfermidade que padeceu quando foi jovem, ao princípio de seus estudos?
—Sim, senhor, recordo-o —respondeu Dom Cagliero—, e lembrança também que Vocês foram me administrar os últimos sacramentos e não me os administrou isso e me disse que sanaria e que com meu breviário iria longe, muito longe, a trabalhar no sagrado ministério sacerdotal... e... não me disse mais.
Pois bem, escuta —prosseguiu São João Bosco—.
E lhe contou as duas visões com todas suas particularidades e detalhes.
Mons. Cagliero, depois de havê-lo ouvido tudo, pediu-lhe ao Santo que narrasse àquela mesma noite, durante o jantar, aos irmãos do Capítulo Superior, aquelas visões. E como não sabia negar-se, especialmente quando o que lhe pedia redundava em major gloria de Deus e bem das almas, condescendeu e contou diante do Capítulo as mesmas coisas que acabamos de expor.
Temos escrito estas páginas —termina Dom Lemoyne— aquela mesma noite sob o ditado do Mons. Cagliero.
(M. B. Tomo V, págs. 105 107)

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